Valores cristãos fundamentais
João Luiz Correia Júnior
Teólogo
INTRODUÇÃO
Os valores cristãos fundamentais estão contemplados na espiritualidade de Jesus. Façamos aqui algumas considerações prévias sobre o que entendemos por “espiritualidade” para, em seguida, apresentarmos três aspectos que podem ser cultivados como valores cristãos fundamentais.
Espiritualidade é algo para ser cultivado ao longo da vida. Penso que essa vivência, aos poucos, vai se configurando no modo como nos comportamos no mundo, em meio à fugacidade de nossa breve existência pessoal.
Espiritualidade é, nesse sentido, uma forma de viver segundo um espírito, um modo de estar no mundo deixando-se conduzir por sua energia vital, a fim de conquistar valores considerados como essenciais para viver.
Há pessoas que vivem segundo o espírito desde mundo, deixando-se conduzir por ele e empenhando-se para adorá-lo e servi-lo, a fim de obter suas benesses. Esses valores são relativos e podem beneficiar a si mesmos, seus familiares, amigos e grupos de interesse, incluindo, entre outros, dinheiro, poder e prestígio.
Jesus, segundo relatos dos Evangelhos, foi tentado por esse espírito mundano (Mt 4,1-11; Lc 4,1-13).
Outras pessoas experimentam viver guiadas por um espírito mais profundo, energia vital que impulsiona a busca de valores, não apenas em benefício de si mesmas, mas em prol do bem comum. Tais valores podem ser alcançados por meio da prática do direito e da justiça, da compaixão solidária e de ações sociais que promovam uma vida com dignidade para todos, e não somente para uma minoria privilegiada. Isso é o que chamam de “amizade social”. Como afirma o refrão da música dos Titãs, “A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte”. Em outras palavras, a gente que viver com dignidade, na busca constante da felicidade. E isso não é um projeto meramente pessoal, mas comunitário.
Esse espírito é tão maravilhoso que as religiões das diversas culturas, desde tempos imemoriais, o atribuem como a emanação de um Amor Maior, algo divino (Deus) que está dentro de cada pessoa e nos permeia coletivamente enquanto humanidade. Esse espírito está presente em todos os seres vivos deste planeta e na imensidão do universo. Trata-se, portanto, de um Espírito Divino.
Na tradição religiosa que deu origem à Bíblia Cristã, o Judaísmo, esse Espírito que provém de Deus é percebido como uma suave e poderosa energia cósmica geradora de vida, sopro vital. Em hebraico (língua em que foram escritos os Textos Sagrados do Judaísmo), a palavra para essa energia é Ruah. No livro do Gênesis, Deus modelou o ser humano do barro e soprou em suas narinas a Ruah, energia vitalizadora, dando-lhe ânimo, vida.
Deixar-se animar pela Divina Ruah consiste em participar dessa força geradora de vida e buscar promover a instauração de um mundo segundo valores socioambientais politicamente inclusivos, onde “todos os seres deste planeta tenham vida, e vida em abundância” (Jo 10,10), numa perspectiva integral, tal qual o fez Jesus de Nazaré, o Cristo de nossa fé.
A pergunta é: como cultivar essa espiritualidade que religa ao Deus da Vida, no seguimento de Jesus? A seguir, apresentamos três aspectos que podem ser cultivados como valores cristãos fundamentais.
PRIMEIRO
Cultivar uma mística pessoal no encontro com o Deus da Vida
A mística, relação de intimidade com o mistério divino (maravilhoso) que tudo permeia e perpassa, é uma experiência existencial que todo ser humano pode cultivar e desenvolver. É cultivada no encontro pessoal com Deus. Envolve uma disponibilidade interior que consiste em se dispor, diariamente, a procurar esse encontro. A prática pode ser facilitada quando se procura ajuda de pessoas mais experimentes nesse processo.
Mas, cabem aqui algumas orientações:
– Disponibilize-se. Procure diariamente oportunizar esse encontro. Escolha um horário específico que seja mais conveniente, ao longo do dia ou da noite, e mantenha-se nesse horário até criar um hábito diário. A gente só ama alguém se houver o desejo e a disposição interior para se encontrar com essa pessoa.
– Meditação e Reflexão1. Aproveite esse momento de encontro para conhecer melhor os mistérios divinos e o seu divino espírito por meio da meditação e da reflexão. Escute o que Deus tem a dizer por meio de textos (de leituras espirituais e/ou dos Textos Sagrados próprios de uma religião). Para as pessoas de fé cristã, sugiro a leitura diária do Evangelho de cada dia, hoje disponível em aplicativos para celular.
– Oração. A palavra “oração” deriva do verbo “orar”, que significa “proferir um discurso oral”, “falar”. Como ato religioso, significa “falar com Deus”, dirigir-lhe a palavra. Por meio da meditação e reflexão, diante do Mistério divino, a pessoa de algum modo escuta Deus. Sua palavra causa rumor dentro de nós. Agora é o momento de falar com Deus. Lembro, aqui, a bela canção “Se eu quiser falar com Deus”, de Gilberto Gil. Ela é um excelente itinerário para a oração. Oração é falar com o Divino Mistério interpelados pelas provocações que nos faz diariamente e por meio de sua Palavra. Fale! Reclame, como fez Jó. Diga o que sente. Desabafe! Nisso consiste o mistério da amizade com Deus. Depois, silencie amorosamente, sentindo-se em seu coração acolhedor. É o próximo passo…
– Contemplação. Contemplar consiste em silenciar diante de Deus. Sentir-se em Seu colo acolhedor. Sem nada dizer. Apenas se sentir plenamente em sua presença amorosa. Fique alguns minutos assim. Em silêncio obsequioso, nos braços acolhedores de quem nos compreende como somos, como estamos e como nos sentimos.
SEGUNDO
Cultivar a compaixão-solidária com o próximo
O cultivo diário de intimidade e amizade com o Deus da Vida por meio da meditação, reflexão, oração e contemplação leva, naturalmente, a uma transformação lenta mas profunda, na vida. Oportuniza, gradativamente, um envelhecimento saudável, culminando no amadurecimento espiritual (espiritualidade, vida animada pelo Espírito do Deus da Vida). Isso é perceptível no comportamento das pessoas que cultivam a espiritualidade, por meio de atitudes compassivas e solidárias com as pessoas mais próximas e com aquelas com as quais nos aproximamos.
O Deus da cultura religiosa de Jesus, o Deus de Jesus, é “Amor por excelência” (agápe); participar desse amor, dentro dos nossos limites humanos, consiste em amar (philia), o amor amizade por todas as pessoas. Conforme o apelo na belíssima Primeira Carta de João (Bíblia Edição Pastoral, 1Jo 4,7.19-21):
7 Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus. E todo aquele que ama, nasceu de Deus e conhece a Deus. 8 Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor,
19 Quanto a nós, amemos, porque ele nos amou primeiro. 20 Se alguém diz: «Eu amo a Deus», e, no entanto, odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê. 21 E este é justamente o mandamento que dele recebemos: quem ama a Deus, ame também o seu irmão.
O centro da Espiritualidade Cristã consiste, desse modo, na prática do amor, tanto no ambiente público quanto no privado. Esse amor testemunha concreta e visivelmente o conhecimento e a união que se tem com o Deus de Jesus. A incoerência fundamental seria afirmar uma fé que não correspondesse à prática do amor.
TERCEIRO
Cultivar a inserção política em prol da vida, de forma integral
A vida segundo o Espírito do Deus da Vida leva à consciência ética e à inserção na política, isto é, na luta social pelo bem-comum, ao lado das pessoas de boa-vontade. Essa é uma característica própria da Espiritualidade Cristã.
Inspirada na pessoa de Cristo Jesus, essa espiritualidade desaliena, isto é, abre os olhos, liberta e motiva as pessoas à participação na luta política pelo bem-comum e pela preservação de nossa casa comum, a mãe terra, com todos os seres vivos deste planeta. Isso pode, entretanto, acarretar dura perseguição por parte daqueles que se deixam inspirar pelo espírito deste mundo.
Não foi por acaso que o poder de Jerusalém, atrelado ao poder romano, mandou matar Jesus. Mas não conseguiram matá-lo, pois o mesmo Espírito que inspirou Jesus passou a inspirar o seu discipulado. Nisso consiste a experiência social da ressurreição. Jesus Cristo está vivo por meio de sua espiritualidade vivida por seus discípulos e discípulas, até o tempo que se chama “hoje”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que você acha desses três pontos sugeridos como elementos que podem ser cultivados como valores cristãos fundamentais?
São relevantes? Não? Reflitamos sobre isso…
REFERÊNCIAS
DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Curitiba: Positivo, 2010.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
CATÃO, Francisco. Espiritualidade Cristã. São Paulo: Paulinas; Valência: Siquem, 2009.
CORREIA JÚNIOR, João Luiz; SOARES, Sebastião A. Gameleira. A Espiritualidade de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2016.
LOSSO, Eduardo Guerreiro; BINGEMER, Maria Clara. PINHEIRO, Marcus Reis. A mística e os místicos. Petrópolis, Vozes, 2022.
SILVA, Drance Elias; CORREIA JÚNIOR, João Luiz; CHAVES, José Afonso (Orgs.). Místicos e Místicas do Nordeste (eBook). Recife: EDUPE, 2023.
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1 Meditação, do latim, meditare, significa voltar-se para o centro no sentido de desligar-se do mundo exterior e concentrar a atenção para dentro de si mesmo. A meditação pode tanto significar um ato de intensa concentração da mente em um assunto. Por meio da meditação pode-se chegar a uma Reflexão mais profunda. Reflexão é uma postura mental que leva à análise e ponderação sobre um comportamento, um fato, um tema, etc. Reflexão é ponderação, consideração atenta sobre algo (DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2010, verbetes “meditação” e “reflexão”).
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