O Natal comentado por Maria, a Mãe de Jesus

O Natal comentado por Maria, a Mãe de Jesus (Lc 1,26 – 36)

Dom Sebastião Armando Gameleira Soares

 

Na Bíblia, Maria, como tantas outras mulheres, é a cantora da libertação de pobres e oprimidos.

O Papa Paulo VI, num de seus últimos documentos, “Marialis Cultus”, que é sobre Maria e nosso apreço por ela e o louvor da parte da Igreja, a mãe de Jesus se situa na fila das mulheres profetisas. A Bíblia começa por outra mulher, também Maria, irmã de Moisés, a qual junto com outras mulheres exalta Deus por libertar o povo da escravidão do Egito e salvá-lo do Mar Vermelho (Ex 15). Lembra o Papa que Maria não deve ser vista como a menina ingênua, alienada da sorte e dos problemas de seu povo. Na verdade, é insuperável e corajosa cantora da libertação dos pobres e com seu esposo José acolheu Jesus em seu seio, Ele que, segundo os evangelhos, se revelaria como Messias, homem enviado por Deus para libertar os pobres do povo e derrubar poderosos de seus tronos (cf.Lc 1,46 a 56).

Raab era mulher estrangeira e até prostituta, que acolheu os bandos de israelitas que fugiam do Egito e buscavam abrigo na terra estrangeira de Canaã (cf. Js 2).

Maria se situa na trilha de mulheres heroínas do povo, alguma das quais chegaram ao ponto de matar inimigos por não aceitarem a opressão de reis dominadores, como se vê em Jz 9, quando “certa mulher” jogou de cima da torre uma pedra de moinho e derrubou-a na cabeça de um bandoleiro chamado Abimelec que queria ser rei e isso significava “opressor do povo”, com a quebra do sistema tribal.

Finalmente não devemos esquecer de Débora que chegou a liderar o povo de Israel como “Juíza e Profetisa” e nomeou Barac como comandante da batalha (cf.Jz 5).

Maria era moça nova, pobre menina da humilde aldeia de Nazaré no norte do país. Sentiu no coração que devia colaborar como as antigas mulheres de seu povo, no momento sua prima Izabel, mais velha que ela, estava grávida. Maria dispôs-se a acolher a misteriosa visita de Deus Pai ao seu povo e pelo Espirito Santo se transformou em profetisa.

A religião tem lugar na organização e na estrutura da sociedade humana, junto com as relações e as estruturas econômicas, as relações e estruturas sociais, as relações e estruturas culturais e as relações e estruturas religiosas, tudo isso criações humanas coletivas.

Na religião, particularmente manifestamos nosso desejo de elevar-nos ao que nos transcende e ultrapassa. Mas somos nós que criamos nossas religiões e não Deus.

Assim somos nós mesmos(as) que criamos as religiões e conferimos dimensão sublime e divina ao que é de fato apenas criação nossa. Por isso facilmente a religião se desvia para a alienação, que é projetar no divino o que nós produzimos e criamos de acordo com nossos projetos.

Na verdade, os evangelistas e os escritos dos apóstolos e seus seguidores e seguidoras, porém, propõem, não uma nova religião, mas nova maneira de sermos seres humanos, como novas criaturas, e concidadãos(ãs) do reino de Deus e como nos diz com força o apóstolo São Paulo. “Nova criatura” significa pessoas renovadas, recriadas pelo amor, pessoas que se transformam por novas relações humanas: novas relações econômicas, sociais, politicas, culturais e religiosas. Na prática, pessoas que se convertem para viver a fraternidade e estar em comunhão com as pessoas mais frágeis, pobres e enfermos. O que nos transforma não é apenas ajudar pessoas pobres, “fazer caridade”, como se costuma dizer, mas influenciar, trabalhar com afinco para que a sociedade tenha lugar para acolher a presença, as necessidades e a contribuição das multidões pobres e excluídas; que haja lugar para todos e todas experimentarem a alegria de viver na terra como casa do Pai. Um mundo radicalmente transformado pela Palavra recriadora que é Deus mesmo mediante seu filho Jesus, Palavra encarnada do Deus Eterno (cf. Jo 1). A Palavra da Bíblia, a mensagem da fé cristã, é radicalmente revolucionaria e vai muito além da religião, ao contrário frequentemente condena as alienações religiosas, expressão de nossa alienação em face da condição humana. Que Maria, mãe de Jesus, a profetisa cantora da libertação seja sempre mais nossa companheira e inspiração na caminhada. Que levemos a sério uma excelente palavra do poeta Ferreira Goulart: “O sentido da vida são as outras pessoas”.

É incrível! Carlos Marx é conhecido como terrível ateu, matador de deuses, negador de Deus. Sem dúvida é negador da religião, o que considera alienação e engano, “ópio do povo”.

Na verdade, era de família hebraica, seu avô era até mesmo rabino, portanto conhecia a Bíblia e dela bebera particularmente da critica profética e dos escritos dos Apóstolos e era profundo admirador de Jesus.

Em 1835, deixou-nos um breve escrito em que comunica seu comentário à alegoria da videira contada por Jesus no evangelho de São João, capitulo 15, do versículo primeiro até o versículo 15. Marx enfatiza com força que o caminho indicado pelo texto é o de nos identificarmos com Cristo, como os galhos com o tronco da árvore. Isto é sermos uma só coisa com

Ele, com a mesma seiva que d’Ele provém e nos diviniza.

Eis ai o sentido do Natal: Sermos cidadãos e cidadãs, responsáveis pelo mundo, pela Natureza e pela sociedade humana. E resistirmos à alienação e aos projetos da perversidade de que nos falam com tanta frequência os salmos da Bíblia, como vemos já desde o salmo primeiro. Os escritos dos Apóstolos se aproximam dos escritos proféticos, quando abrem nossos olhos para perceberem que a questão não é cultivar uma determinada religião ou reformá-la, mas reorganizar a convivência humana, desde o trabalho e a economia até às relações de amor e de comunidade entre os seres humanos.

Eis quem é o nosso Deus, o Deus de Maria: “O que agiu com seu braço valorosamente, dispersou os que no coração alimentavam pensamentos soberbos, derrubou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes, encheu de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias”.

 

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