Anotações para uma possível leitura de Josué 24,1-28

Narciso Neves de Farias, teólogo e biblista*

O capítulo 24 do livro de Josué é uma proposta para compreender a nova organização social, a práxis dos sujeitos que produziram suas tradições e enxergar os fatores que deram unidade à nova comunidade denominada de Israel.

E assim, dentro dessa perspectiva compreender as seguintes questões: qual a função do credo, também da aliança, tendo em vista o seu lugar de destaque na Bíblia; Como era a forma de propriedade da terra; De onde vêm os grupos sociais que constituíram Israel; Como eram suas relações sociais; O que motivou as mudanças e qual a base de sustentação ideológica dos grupos.

Assim, Josué 24,1-28 parece ser o eixo que faz percorrer todo o livro e encontrar o sistema social contra o qual os grupos reagiram ou se adaptaram aos modelos econômicos, como a terra estava sendo utilizada, e qual a sua função no modo de produção. Qual a unidade social que teve como fator principal a aliança com Iahweh, como base fundamental de sustentação da organização social

Imagina-se que Js 24,1-28 parece revelar a função social referente aos grupos de remanescentes e exilados, dentro de Canaã, numa determinada fase histórica do pós-exílio. Época em que, vários grupos se organizaram numa aliança com Iahweh, dentro de um projeto proposto pelo redator javista (ver 3º Isaias), que visava uma organização social, que fosse possível a defesa dos interesses da unidade básica de produção do clã em confronto com o projeto econômico implantado pelo Império Persa denominado de “casa dos pais”. (Obs.: Eu e minha casa serviremos ao Senhor – Js 24,15?)

Precisa-se compreender a narrativa de Josué 24,1-28 como sistematização teológica necessária para firmar a coesão das tradições populares e dar novo sentido à cultura Javista face às culturas diversificadas do mundo religioso da época do pós-exílio. Então, aliança proposta entre Iahweh e os diversos grupos dos remanescentes e dos exilados seria uma legitimação de um novo projeto para garantir a justiça e o direito dos que estavam sendo excluídos pelos imigrantes exilados.

Interpretar e entender a narrativa de Josué 24,1-28 como sistematização teológica que firma a união das tradições religiosas espalhadas em Canaã, em vista de um sentido novo à religião Javista naquele momento. Então, a proposta de uma aliança – bĕrît – com Iahweh, Deus único, entre os grupos dos exilados e de setores dos remanescentes (‘am ha ’āres – povo da terra), tinha por objetivo a legitimação de um novo projeto que garantisse uma relação contratual permanente entre aqueles grupos na nova estrutura social da comunidade da aliança.

É um texto que traz a expressão de uma realidade social e visa intervir nessa realidade para que a proposta feita realmente aconteça. E, em sendo assim, a aliança com Iahweh teve por função unir grupos e constituir a comunidade do pós-exílio (DAVIDSON, 1995, p. 315-316), além de fornecer elementos para dar sentido à nova construção social, num sistema de representações práticas (ideias, ritos, cultos) para explicar a concepção de mundo.

Porém, o grupo dos exilados, representados pela elite sacerdotal judaíta, rejeitou a proposta e o direito à posse da terra alegado pelos remanescentes, sob o fundamento de que em Judá tinha ficado uma população impura e idólatra, que deveria ser exterminada. Com esse fundamento ideológico, os remanescentes sofreram um processo de expulsão, tendo em vista que, segundo o profeta Ezequiel, a terra foi dada ao povo fiel (Ez 33,23-29; 36,33-36; 37,25-27), e a população impura e idólatra devia ser exterminada. Some-se a isso o embate jurídico sobre a posse da terra, porque os exilados deviam trazer títulos de propriedade, enquanto os remanescentes tinham apenas a posse (LIVERANI, 2008, p. 315). Isso significava dizer que os exilados, sob a direção da elite sacerdotal, retomaram suas antigas propriedades à força (GALLAZI, 2011, p. 112).

Segundo N. P. Lemche, o genocídio foi preparado ideologicamente para justificar o exclusivo direito dos israelitas (elite sacerdotal) sobre a terra de Canaã, cuja conclusão se encontra em Js 24 (1998, p. 120), tendo em vista que a estratégia de reassentamento dos exilados que retornaram da Babilônia, no sentido de convivência com os remanescentes, nos termos de envolvimento e fusão, foi definitivamente abandonada, em favor da proposta que rejeitava qualquer aproximação com os remanescentes (LIVERANI, 2008, p. 315).

As narrativas do Trito-Isaías, segundo S. Gallazzi, podem identificar o contexto desse conflito que se estabeleceu com a volta dos exilados, quando teve inicio a construção do templo. Nessa época, Zorobabel estava na condição de rei, Josué era o sacerdote e os levitas a eles se juntaram. O profeta então faz sua denúncia contra os que querem a construção do templo: Is 57,15b “Eu habito em lugar alto e santo, mas estou junto ao abatido e humilde, a fim de animar os corações abatidos”. Mas os exilados, liderados pelos sacerdotes e pelos anciãos, avançavam no seu projeto de construção do templo e consolidação da reconquista da terra (teoria da conquista). A reação vem pela voz do profeta (Is 63,16). O templo está sendo construído para alimentar o sistema tributário (2011, p. 120).

Mas, de acordo com os informes acima, pode-se dizer que o projeto da elite sacerdotal foi vitorioso em parte, pois, segundo S. Gallazzi, após 515 a. C., não se fala mais em Zorobabel. Não interessava à Pérsia um templo que alimentasse sonhos de independência política (Zc 4,14). No entanto, o grupo sacerdotal ficou responsável pela condução política de Judá (2011, p. 125). A missão de Neemias (445 a. C.) foi providencial. Colocou o templo no centro da atividade política e reestruturou o poder interno. A autoridade política agora é o sumo sacerdote. A terra de Judá passa a ser propriedade do templo. Em consequência, o povo da terra perde, em definitivo, seu direito de legítimo proprietário da terra. É então, nessa época, que se faz a distribuição da terra por sorteio e todos trabalham para a manutenção do templo e do tributo. E, embora a casa dos pais (bêt ’abôt) continuasse com sua autonomia, não tinha mais a propriedade da terra. Além do mais, as relações sociais vão ser orientadas entre o que é sagrado e o que é profano (2011, p. 129-130).

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* Narciso Neves é teólogo e biblista, membro do Cebi e colaborador deste Site. Tem forte atuação junto ao Cebi Agreste PE.

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