50 anos do mês da Bíblia e sua leitura nas CEBs

Por: Hermínia Boudens*

Todo ser vivo, para se desenvolver com saúde, precisa de alimento e de muitos outros cuidados que favorecem a vida. A pessoa humana, para viver feliz, além do alimento, da roupa, da moradia e do trabalho, precisa relacionar-se com outras pessoas e com Deus. É importante, para nós, comunicar nossos sentimentos, expressar nossas alegrias, nossas tristezas, falar de nossas necessidades e preocupações. Precisamos também falar de nossa fé, de nosso amor, de nossos ideais e de nossos planos.

Um jeito muito bom de comunicar a Deus e aos irmãos toda a vida que existe dentro de nós, é através da celebração comunitária, como fazia o Povo de Deus no Antigo Testamento, e como acontecia também no tempo de Jesus e entre os primeiros cristãos. A Bíblia nos conta como o povo se organizava para celebrar sua vida e sua fé no Deus Javé. Usava o canto, a dança, os instrumentos e as coisas ligadas à vida e à natureza. As celebrações eram feitas de acordo com os momentos da vida do povo. A festa era considerada uma coisa sagrada. Assim, havia celebrações para vários tipos de festa. Celebrando a vida, o povo se animava, crescia na fé e se tornava mais fiel à Aliança.

Hoje, também, a celebração e a festa fazem parte da vida de nossas Comunidades e nos dão mais força e alegria na caminhada. Através do canto, da dança, das orações, das fogueiras, dos símbolos de nossa fé e de nossa cultura, expressamos nossos sentimentos: falamos a Deus e aos irmãos da alegria, da gratidão, do arrependimento, da amizade, da vida nova, da saudade, da luta e das pequenas vitórias.

Assim como, para ter saúde e dar frutos gostosos, a planta, além da terra e da água precisa também da luz, do calor e do brilho do sol, a Comunidade que é enraizada no chão da vida e orvalhada pela graça de Jesus que se manifesta na comunhão entre os irmãos e irmãs, precisa também se esquentar e se iluminar no fogo do Espírito Santo, que se faz presença viva no momento da celebração comunitária.” (Cartilha das Comunidades, página 15 1ª edição- Caruaru, 1992.)

Esse texto, tirado da Cartilha das Comunidades, elaborada pela Fundação Santuário das Comunidades Eclesiais de Base do Agreste de Pernambuco, é uma pequena amostra como a leitura popular da Bíblia (uma leitura a partir da realidade e em defesa da vida) é enraizada na vida das Comunidades. E não poderia ser diferente.

O Centro de Estudos Bíblicos – CEBI e as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs são como irmãs gêmeas, nasceram no mesmo tempo, cresceram juntas. A Leitura Popular da Bíblia, método hermenêutico desenvolvido pelo CEBI, ajudou inúmeras Comunidades a ler a Bíblia a partir da própria realidade.

O CEBI acompanha, há 40 anos o mês da Bíblia – iniciativa da CNBB -, lançando a cada ano, um pequeno subsídio a aprofundar, sobre um livro bíblico, numa ótica da profecia e da nova Aliança em Jesus Cristo. Esses subsídios têm ajudado os círculos bíblicos, grupos de reflexão bíblica, catequistas, animadores e animadoras das Comunidades, ao longo dos anos, de tal maneira que muitas pessoas se “apropriaram” da leitura popular e usam o método naturalmente no seu dia-a-dia. O oxigênio dos subsídios do CEBI está nas veias sanguíneas das Comunidades, dando vida a outros subsídios, como, por exemplo, a Novena de Natal, do Santuário das Comunidades, que também está na sua 40ª edição. Mas, o oxigênio vai muito além, transformando a espiritualidade que arrebenta da leitura popular, em ações comunitárias transformadoras no campo sócio-político.

Assim acontece, por exemplo, no Sítio Cruz – Garanhuns/PE onde existe, na Comunidade, a Escola Bíblica Frei Juvenal. O entendimento da Palavra de Deus levou a Comunidade a ações transformadoras, entre elas o projeto “Sementes do Semiárido”, que, através de uma séria de atividades agrárias para crianças, adolescentes e jovens de 15 famílias, busca a inclusão destes na aprendizagem e valorização de atividades agrárias aplicáveis à região do semiárido nordestino. Resultado é a permanência do grupo no campo, evitando o êxodo rural, e segurando a geração de renda.

Podemos apontar outros indicadores de como a leitura popular da Bíblia nas Comunidades tem um impacto grande na vida das pessoas pobres.

Poucos dias atrás tive um pequeno encontro virtual com estudantes de psicologia da Universidade de Pernambuco e algumas pessoas das Comunidades Eclesiais de Base. As estudantes queriam entender melhor como era a vivência e a dinâmica das Comunidades. Deu para perceber, pelas respostas, que a Comunidade não é somente entendida como um território habitacional, como comunidade rural, bairro, distrito ou vila. Uma pessoa falou que a comunidade, para ela, é um grupo que dá apoio a organizações não governamentais no seu município; outra falou que é uma comunidade dentro da rede de ensino público onde atua; outra falou que se sente acolhida, valorizada e apoiada pelo Santuário das Comunidades, lugar de formação para as CEBs e demais organizações populares. A vivência numa comunidade, de qualquer forma, acolhe e fortalece. As estudantes perguntaram então como era esse fortalecimento. E aí entra a importância da leitura bíblica a partir da realidade do povo sofredor. As comunidades se organizam, a partir de uma espiritualidade libertadora e inclusiva, seguindo os passos de Jesus Cristo e a partir de uma clara opção pelos empobrecidos, para conquistar direitos humanos básicos, que, muitas vezes lhes são negados pelo poder público, pelo poder financeiro, pelo poder empresarial e ainda pelo poder religioso. As comunidades ajudam as pessoas a se enxergar como gente, e promovem, com ações concretas, esperança. E o esperançar é uma chama divina que acompanha a caminhada do povo de Deus antigamente e na atualidade. O fortalecimento é sentido na coletividade, no servir, no caminhar juntos, ou numa expressão eclesial: na sinodalidade. E a leitura popular da Bíblia alimenta o compromisso de estar juntos nessa caminhada, em busca de soluções de pequenos e grandes problemas na vida do cotidiano.

Vale a pena lembrar que os poderes acima citados são, na sua grande maioria, poderes masculinos, e que, maravilhosamente, nos grupos e comunidades que usam a leitura popular da bíblica no seu dia-a-dia, destaca-se a presença feminina que é marcante, contribuindo no processo que leva a mais igualdade e equidade nas relações de gênero.

Outro exemplo de como as irmãs gêmeas sempre caminham juntas, foi uma decisão da Comissão Regional das CEBs da CNBB/NE2 de fazer um aprofundamento bíblico e, durante dois anos fez um estudo coletivo da excelente série do CEBI – “Uma introdução à Bíblia”, em 08 volumes, de Ildo Bohn Gass (Org.). Foi uma animação só e os membros da Comissão se comprometeram a criar e/ou reativar estudos bíblicos nas suas localidades de inserção.

O CEBI-Centro de Estudos Bíblicos foi fundado em julho de 1979, as CEBs-Comunidades Eclesiais de Base nasceram na década de 70, apoiadas pelo documento final da Conferencia Episcopal de Medellin (1968). Duas gerações se passaram. A identidade, tanto do CEBI, como das CEBs, está entrelaçada com a realidade em que vivemos e por isso sempre está em processo de transformação. Novidades aparecem, novos conhecimentos em áreas interdisciplinares ajudam cada vez mais a entender melhor o texto bíblico, bem como a comunidade no seu contexto sócio-político. O rosto das Comunidades está mudando, mantendo seu sonho de uma sociedade democrática e justa e de uma igreja circular e participativa. E continua se alimentando com a leitura popular do texto bíblico, principalmente do Novo Testamento.

A Palavra de Deus no “Magnificat” não deixa dúvidas: “Derruba os poderosos dos seus tronos erguidos com sangue e o suor do seu povo oprimido; e farta os famintos, levanta os humilhados, arrasa os opressores, os ricos e os malvados.” (cf Lc 2, 52-53). Deus não usa armas de fogo nem doutrinas excludentes. Ele não berra: “Deus acima de tudo” ou “Deus no comando”. Ele é a brisa suave (1Rs 19,12b), o Servo Sofredor (Is 42ss), Ele é Amor (1Jo 4,8), Ele está no meio de nós (cf Mt 18,20) e é rico em misericórdia (Ef 2,4). A fé nesse Deus amoroso faz a gente celebrar, cantar, dançar e entoar: “Gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças extraordinárias.

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*Hermínia Boudens é assessora das Comunidades Eclesiais de Base no Agreste pernambucano, da Comissão do Santuário das Comunidades de Base e e da Comissão Regional das Cebs.

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